236. apertar para caber
uma reflexão sobre nos moldarmos aos outros, com podcasts, livros e amigos à mistura
No último ano, mais coisa menos coisa, tornou-se hábito ouvir um episódio de podcast de manhã, enquanto me arranjo. Normalmente, leio umas páginas enquanto tomo o pequeno-almoço, mas depois passo aos podcasts. Quer tenha ou não outros momentos de companhia com podcasts ao longo do dia, sei sempre que, de manhã, vou ter um bocadinho para ouvir as pessoas que me fazem rir ou me dão algo em que pensar.
Esta semana, fui ouvir um dos episódios que tinha em atraso do gostosas também choram, o podcast da Lela Brandão. O título do episódio prometia — pare de se apertar para caber — e ao fim de poucos minutos tive a certeza de que aquilo em que estava a pensar tinha de ser organizado em palavras escritas.
Ultimamente tenho vários momentos aleatórios em que dou por mim em modo #gratidão, prontíssima a virar coach ou influencer ou outra coisa qualquer em que este modo encaixe. Para perceberes a gravidade da situação, vou listar-te as últimas ocasiões em que isso aconteceu: fui apresentar uma proposta de campanha ao presidente, ele gostou, saí da sala dele a sentir-me a maior e #gratidão porque se não tivesse apoio de pessoas a dizerem-me que sou capaz não tinha conseguido; estava a caminhar pela Constituição num sábado de manhã para ia ter com uma amiga a um café e ia apreciando estas partes da cidade onde a moda se junta ao típico e #gratidão porque tenho mesmo sorte de viver nesta cidade incrível e por ter encontrado uma série de pessoas que adoro do fundo do coração; acordo de uma mini-sesta no colo dele, vejo estrelas pela janela e logo depois entre um não queria nada ir para casa e um tenho de ir agora antes de adormecer por completo e só acordar amanhã lá vem um #gratidão porque, pronto, é ele.
No fundo, sei que esta sensação de estar agradecida por tanta coisa pequena se prende com algo maior: já não sinto que tenho me apertar para caber. Senti isso muitas vezes ao longo da vida. Tinha de falar mais baixo, de falar mais, de falar menos, de opinar menos, de ler menos porcarias, de ouvir menos porcarias, de sair mais, de usar menos maquilhagem, de usar mais maquilhagem, de tirar o batom vermelho, de não mostrar o que sei para não parecer arrogante, de não participar para não parecer convencida, de usar roupa larga, de não me queixar, de não perturbar, de não dar nas vistas.
Sinto que passei a vida a tentar moldar-me às pessoas que me rodeavam. Não podia ser totalmente eu — não em Trancoso porque tudo parecia ficar estranho para lá, era convencida, tinha a mania de que era mais importante, sei lá mais o quê. Não em Lisboa porque falar alto é coisa de aldeia, não se dizem palavrões, não és tão inteligente quanto os outros portanto a tua visão não importa, e mais umas quantas coisas. E a certo ponto parece que nos vamos editando constantemente e já nem sabemos bem quem somos, quem queremos ser e com quem queremos ser.
Claro que é normal termos diferentes apresentações de quem somos de acordo com o lugar onde estamos — não somos a mesma pessoa no trabalho e em casa, com a família e com os amigos —, mas não é suposto termos de nos apertar para caber junto das nossas pessoas. É suposto sermos inteiros, com espaço, até porque queremos o mesmo dos outros. Então porque é que nos deixamos apertar para caber junto de pessoas que não têm espaço para nós? Honestamente, já não temos idade para isto.
Enquanto ouvia a Lela falar sobre o tema pensava precisamente em como é bom encontrarmos os lugares e as pessoas que têm espaço para nos deixar ser como somos, como quisermos ser. É que se temos de nos apertar para caber em algum lugar talvez não seja suposto caber ali.
Esta semana no daylight
O início do mês traz sempre uma pequena reflexão sobre o mês anterior e, por isso, esta semana houve coisas que iluminaram maio;
Escrevi ainda sobre O Tempo Entre Costuras, da Maria Dueñas, um livro que adiei ler durante tanto tempo para, no fim, acabar rendida.
A viver nas páginas de…
O Porto - Nos Recantos do Passado, de Germano Silva
Continuamos a tentar reduzir a pilha de livros físicos por ler e, desta vez, calhou um livro que, na verdade, estava na minha TBR de maio: O Porto - Nos Recantos do Passado, do Germano Silva.
Não sei se o usei como arma de manifestação, mas comprei-o em janeiro de 2021, semanas antes de me candidatar ao mestrado na FLUP. Tinha começado aquele ano a pedir ao universo que me trouxesse para aqui, já chegava de brincar às casinhas, era preciso trazer-me a casa. Devia estar muito confiante, porque comprei o livro, mas fui deixando-o de lado. Tinha de o ler quando já estivesse no Porto, quando esta já fosse a minha casa.
Deixo-te a sinopse:
Sabia que:
O primeiro filme feito em Portugal foi sobre a saída das operárias da fábrica da Camisaria Confiança, na Rua de Santa Catarina?
No local da atual Rua Formosa havia uma artéria a que se dava o tétrico nome de Rua do Enforcado, por ali ter sido o enforcamento de um galego que matou a sua ama para a roubar?
A origem da palavra Bolhão se deve à existência, naquele lugar, de uma nascente em que a água saía em borbotão?
A Rua das Taipas deve o seu nome a um terrível surto de peste que surgiu naquele local, em 1486, que foi de imediato entaipado para evitar que a doença se alastrasse?
Através destas novas crónicas de Germano Silva, redescubra as histórias de um Porto do passado que tão vivo se mantém nos seus recantos, nas suas ruas e nas suas gentes.
"Porto: Nos Recantos do Passado não é um livro de História. É um livro de histórias portuenses. E por isso foi escrito para os que amam o Porto, a quem o dedicamos, dentro daquele princípio de que a essência de um povo reside nas suas histórias."
Recomendação aleatória da semana
Piranesi, de Susanna Clarke
Falei dele na edição da semana passada e não podia deixar de vir aqui recomendar. Como disse, queria lê-lo há algum tempo e fui deixando passar. Calhou que Piranesi foi votado como leitura conjunta do Discord do Livra-te e, por isso, achei que era a desculpa ideal para finalmente o ler.
No início pareceu-me um pouco confuso — que raio de trip era aquela? No entanto, à medida que avançava na história também ficava constantemente mais investida e agarrada àquela história. A escrita é muito bonita e torcemos totalmente para que Piranesi esteja bem, embora nem percebamos inicialmente se ele está mal. Além disso, o livro traz uma excelente reflexão filosófica. Gostei muito, muito.
Coisas que iluminaram a semana
Hotel ao vivo, o espetáculo de despedida do podcast do Luís Franco-Bastos
Para terminar esta viagem que tem sido a podsérie Hotel, o Luís Franco-Bastos decidiu gravar os episódios finais ao vivo. No Porto, veio gravar ao Teatro Sá da Bandeira. O Franco-Bastos é um dos humoristas portugueses de que mais gosto, embora reconheça que nem sempre sou super atenta ao que ele vai fazendo. O Hotel é, na verdade, o trabalho dele que fui acompanhando com mais atenção e, por isso, não podia perder o final. O espetáculo tem uma pequena introdução e, durante a gravação, o episódio tem muita interação do público. Se ainda não conheces as maravilhas do universo da Marateca… fica o convite para começares uma maratona.
Senhor de Matosinhos com amigos
O primeiro pretexto foi ver Richie Campbell ao vivo, mas acabei por juntar amigos e jantámos por lá (comi um belo pão com chouriço e queijo 🤌), conversámos, demos uma volta pelo recinto e o concerto acabou por ser a parte menos memorável da noite. Quando digo que amo esta cidade e a vida que ela nos dá também me refiro ao privilégio de ter quase todas as minhas pessoas preferidas por perto.
Até para a semana,