A memória mais vincada que tenho da minha bisavó é ela a entrar em casa da minha avó. O barulho a abrir a porta, os passos pequenos e quase silenciosos. Durante anos, podia jurar que a ouvia entrar em qualquer casa onde estivesse.
Aquilo que me lembro de vermos juntas na televisão é o Casamento Real espanhol. Lembro-me bem do vestido da Letizia, mas de tudo o resto só me lembro de ser muito cedo, oito da manhã ou algo assim, e a minha bisavó chegou, passos pequenos e quase silenciosos, e abriu a porta da sala para se sentar comigo no sofá a ver aquele casamento que em nada nos dizia respeito.
Costumava dizer-lhe que um dia ia ser doutora e que ela ia ter de ir à minha bênção. Pelas minhas contas era possível. Que importava se ela iria estar perto dos cem nessa altura? Se calhar ambas sabíamos que não ia acontecer, mas aparentemente quando se tem dez anos pode dizer-se à vontade que se vai ser doutora e que a bisavó pode assistir a tudo isso, mesmo que setenta e oito anos as separem.
Muitos anos depois de a minha bisavó morrer soubemos a verdadeira história de vida dela. Nesse dia, na minha cabeça começou a surgir um livro, uma história que eu havia de contar. Ainda não ganhei palavras para o fazer.
Mas também me ocorre que ela nunca soube que eu ia escrever. Quando ela morreu eu ainda não tinha escrito a minha primeira história, só passava os dias rodeada das histórias dos outros. Será que ela teria gostado de saber? Ficaria surpreendida? Ou será que acharia expectável, ela que me viu criar histórias elaboradas sempre que brincava com bonecas?
Esta semana fez dezoito anos desde que a minha bisavó morreu. Honestamente, já não sei bem se as memórias são reais ou construídas. Já passei mais anos sem ela do que com ela. E, embora ainda nos surja muitas vezes alguma piada privada ou algum momento, a verdade é que as memórias já não são minhas, se calhar nunca foram.
Não sei se foi por calhar serem estes dias de abril, mas passei a semana a pensar nela. O que pensaria ela de tudo isto? Perceberia o tumulto que existiu depois e a guerra fria que se instalou? Perdoar-me-ia por eu até já ter título para o livro que quero escrever sobre a história dela? Saberia dizer por que motivo gostava tanto de ver os Morangos com Açúcar comigo? Mas, acima de tudo, aquilo que queria mesmo saber agora é se, secretamente, apesar de me dizer que aquilo não se dizia, ela até achava graça à música do Saul.
Esta semana no daylight
Semana que não deu para muito, só para duas opiniões de livros:
O primeiro foi o Conversas com Escritores, da Isabel Lucas;
O segundo foi o Boys Don’t Cry, da Fiona Scarlett.
A viver nas páginas de…
Andei a ler outras coisas (descubram mais abaixo) e, por isso, ainda não passei ao livro do João Pinto Coelho de que falei na semana passada. Pelo menos entro de férias no final da semana
Coisas que iluminaram a semana
Apesar do Sangue, de Rita da Nova
A Rita deu-me o privilégio de poder ler uma cópia avançada do novo livro e eu, a tentar conter palavras, quero só dizer que tenho muito orgulho na minha amiga. Este é o meu livro favorito dela (e eu que achei que nenhum conseguiria quebrar a relação umbilical que tenho com As Coisas Que Faltam), o meu livro favorito do ano e, honestamente, o meu livro português favorito (A História de Roma, prometo que não te abandono, mas…). Não sei se estão preparados para o quanto a escrita da Rita está perfeita neste livro.
Até para a semana,
Sem pressão, mas quero ler esse livro 🫰