Cresci a passar fins-de-semana no café da aldeia. Ao domingo, as revistas informativas e os jornais desportivos eram a leitura obrigatória. Na televisão, ainda havia um jogo de futebol em canal aberto e a Sport TV não tinha vinte e sete canais e não era paga à parte. As tardes eram feitas de futebol. Naquela época sabíamos quem eram os três grandes — FC Porto, SL Benfica e Sporting CP —, mas não sabíamos quem era o quarto grande. Parecia haver mais luta, mais concorrência.
Afastada das rivalidades locais de cada cidade, o clube inimigo era o Benfica. A minha família era do Sporting. E eu ia conhecendo ao pormenor cada clube pelos jornais enquanto me descobria portista. É um daqueles casos de o coração ter razões próprias porque, na verdade, no início dos anos 2000 o título de campeão nacional de futebol que achei mais bonito foi o do Boavista. Um clube do Porto, cidade que, com aquela idade, não conhecia e vivia na minha imaginação apenas como a cidade da arte1, mas que já me parecia ser uma espécie de cidade oposta a Lisboa. Se um clube portuense ganhava era ir contra o status quo da capital — ou lá o que é que uma criança de cinco anos e meio pensa nos cidades rivais. Claro que, como me fiz portista, o Porto para mim passou a ser a cidade do meu clube e todos os outros me interessavam pouco. Só que naquele ano o Boavista ia ser campeão e no café ia haver festa na mesma e as t-shirts brancas eram pintadas de xadrez. O Boavista era um dos grandes… não era?
Vou poupar-te factos jurídicos e históricos, porque não temos tempo para eu apresentar a minha tese sobre como as sanções foram injustas para todos os intervenientes, mas depois de ter sido despromovido por causa do processo Apito Dourado e de ter passado anos sem regressar à liga principal, o Boavista não voltou o mesmo e um clube com tantas dificuldades financeiras tem ainda mais dificuldade em viver. Normalmente vão-se safando e lá se aguentam na liga principal. Mas esta época foi dura. Se calhar, não fosse ter um boavisteiro na minha vida, isto ter-me-ia passado ao lado, visto que eu própria passei ao lado da época e não tive muito estofo para lidar com o Porto, quanto mais com um clube que não é o meu. No entanto, fui olhando para resultados, vi a tensão depois da derrota em casa com o Gil Vicente e acho que foi aí que me caiu a ficha de que não era só mais uma época má.
Estou a escrever o texto horas antes do final do campeonato, com o Boavista em último e a precisar de ganhar e de ver Farense e AVS perderem, mas queria vir escrever sobre o Boavista enquanto ainda sabemos que é equipa da primeira divisão, porque algo que ultrapassa as rivalidade é a paixão pelo futebol e, no fim do dia, isto é mais sobre futebol do que sobre inimigos, embora nem todos o vejam assim.
Embora seja certo que nem todos os fins são tristes, a verdade é que a maior parte dos fins estão carregados de tristeza, de melancolia. E é desolador ver algo definhar, como quando assistimos a doenças prolongadas de alguém de quem gostamos muito. Parece injusto ver um clube bom perder-se de tal forma que já nem parece saber qual é a sua identidade.
O problema do futebol… okay, desculpa, um dos problemas do futebol é estar muitas vezes para lá do desporto. Os interesses políticos, os constantes casos de corrupção, de desvio de dinheiro, as ilegalidades. Os clubes são o que são pelos seus adeptos, é certo, mas os presidentes deviam ser uma espécie de representantes desses adeptos. O problema é quando representam a célula que primeiro até ajuda, mas depois vai crescendo e se torna cancerígena. Quantos clubes não saíram prejudicados por causa do ego dos seus dirigentes?
Este final de época traz-me tristeza por um clube que não é o meu, mas que me deixa melancólica. Eu sei, eu sei, a bola é redonda, são onze para cada lado e isso tudo, mas entre as vitórias e as derrotas normais da vida nunca esperamos que uma das derrotas seja ficar triste com a tristeza dos outros… por causa de futebol.
[Confirma-se, entretanto, a descida do Boavista à segunda liga.]
Esta semana no daylight
Nada a apontar 🤷♀️
A viver nas páginas de…
A Origem dos Dias, de Miguel D’Alte
Sendo um dos autores da nova geração, claro que tinha curiosidade em ler Miguel D’Alte, no entanto fui adiando porque não ouvi as melhores opiniões em relação a Os Crimes do Verão de 1985. Com A Origem dos Dias isso não aconteceu e a impressão com que fiquei foi a de que houve uma evolução notória pelo que decidi arriscar, comprei o livro no final de novembro e finalmente vou tirá-lo da longa pilha de livros por ler.
A sinopse do livro diz:
«Em janeiro de 1998, eu tinha trinta anos, era pobre e um escritor falhado.»
Tomás Franco mudou-se para a cidade há dez anos para escrever e fugir de uma infância lacerada por uma tragédia, mas também para perseguir a história do seu avô, Pierre Lacroix, um escritor outrora premiado, fugido de França durante a Segunda Guerra, e do qual ninguém quer falar.
No entanto, nada corre como esperado, e tudo o que encontra são noites que passam como clarões, camas geladas, a agonia do silêncio e da solidão, empregos precários. Até que conhece Leonor, uma rapariga envolta em mistério que lhe muda o destino.
No Porto, França, Florida ou Marrocos, Tomás Franco persegue a literatura proibida e indecente, os passos dos escritores imortais, enquanto caminha sobre a ténue linha que separa as personagens dos livros das reais. O amor impossível e visceral, a paixão como doença, apartamentos assombrados trancados para sempre, a aparição de uma figura do passado, as diferentes versões de nós próprios, a finitude da vida.
«Muitas vezes penso no que teria acontecido se nunca tivesse ligado a Leonor.»
É esta uma história de amor?
Coisas que iluminaram a semana
Concerto Solidário da Carolina de Deus no Casino da Póvoa.
Normalmente, não gosto de destacar muito estes eventos da instituição em que trabalho por motivos óbvios, mas depois de uma semana em que os planos foram abalados por um cartão de cidadão extraviado e a sua recuperação, questões mecânicas para resolver, muito trabalho, poucas horas de sono e uma francesinha que ficou aquém (molho que sabe a mostarda é um big no), ver a Carolina de Deus ao vivo foi um encerramento bonito para uma semana de loucos. É sempre bonito ver uma artista jovem com uma voz forte e bonita mostrar as suas músicas ao vivo, ainda mais perante um público que não é totalmente o dela. Saí de lá com a certeza de que, por muito que haja semelhanças nas vozes de muitas artistas da nova geração, é na maneira bonita e genuína como transformam em música as suas histórias que assenta o seu grande poder.
Até para a semana,
Um dia falamos sobre isto, pode ser?