231. a evolução de um canivete suíço.
sobre ser um canivete suíço no mundo do trabalho — e como isso afeta a nossa evolução.
Evolução
(e·vo·lu·ção)
nome feminino
1. Acto ou efeito de evoluir.
2. Transformação gradual ao longo de um período (ex.: evolução das ideias; evolução tecnológica).
3. Nova fase em que entra uma ideia, um sistema, uma ciência, etc.
4. Movimento de tropas, de navios, etc., para mudarem de formatura ou de direcção.
5. Série de movimentos ou passos executados de forma gradual e harmoniosa (ex.: evoluções nas barras assimétricas; é atribuída uma nota à evolução da escola de samba na avenida).
6. [Por extensão] Processo de crescimento, de desenvolvimento ou de aperfeiçoamento (ex.: houve uma clara evolução no desempenho).
7. [Astronomia] Marcha circular de um corpo celeste no espaço, em torno de um outro. = REVOLUÇÃO
Num destes dias vinha numa caminhada a pensar sobre evolução. Pensei na evolução no geral, nas mais variadas áreas da vida, mas fiquei presa naquela que sinto que acaba por influenciar todas as outras: a evolução profissional.
Estudei para ser jornalista e quase o fui. Durante a faculdade, escrever artigos jornalísticos para a ESCS MAGAZINE, um dos núcleos extra-curriculares da Escola Superior de Comunicação Social, era das coisas que me deixava mais feliz. Entre trabalhos académicos para os quais não me sentia qualificada, ali sentia que estava mais perto de fazer aquilo que mais queria na vida: escrever. Ali, podia fazê-lo sobre os mais variados temas. Está bem que me focava nas secções de Literatura, Música, Desporto e dei uns toques em Opinião (porque queria escrever crónicas), mas escrever ali deixava-me mesmo muito feliz.
Claro que de um núcleo universitário para a vida laboral vai um salto e quando fui parar a uma rádio local, no fim do verão em que me licenciei, achei que podia ser um bom princípio. Não queria viver com a minha mãe para sempre e sabia que queria fazer uma pós-graduação em Marketing Digital, mas se fizesse ali uns meses podia ganhar dinheiro e experiência. Correu-me mal. Nunca cheguei a ter um contrato e decidi nem sequer esperar pelo dinheiro que me iam pagar. Só queria fugir dali o mais rápido que pudesse.
Pronto, comecei mal, mas quem nunca começou mal?
Fiz a minha pós-graduação e comecei longos dezoito meses de envios de currículos e desespero. Como é que nos diferenciamos quando não temos experiência, quando não sabemos fazer, na prática, nada? Há uns meses entrevistámos candidatos para um estágio no departamento de marketing em que, até então, estava sozinha e uma das miúdas tinha acabado de sair da universidade. Estava tão nervosa e não conseguia mostrar-se segura, não conseguia mostrar que se apostássemos nela ela ia conseguir corresponder. No final quase a abracei. Ainda conheço bem a sensação…
Tive a sorte amaldiçoada de conseguir um trabalho como assistente de marketing ao mesmo tempo que consegui um contrato como freelancer a escrever artigos para uma empresa de investimentos imobiliários. Foi sorte porque finalmente ia fazer aquilo que sabia fazer (escrever) enquanto aprofundava competências. Foi amaldiçoado porque ordenado mínimo em Lisboa de 2019 é ser pobre (na de 2025 nem quero dizer) e é sentir que é uma injustiça trabalhar tanto para ganhar tão pouco.
Escrever sobre investimento imobiliário ensinou-me muito. Em primeiro lugar, ensinou-me, obviamente, sobre esse tema. Em segundo lugar, ensinou-me a escrever de uma forma não-jornalística e não-blogueira, mas sem perder a minha voz. Aprender a moldar a minha voz na escrita foi algo que comecei no curso de jornalismo, mas era um exercício muito mais complicado ali. Havia outras regras, uma objetividade que parecia inimiga da criatividade, um tom que eu não gostava assim tanto de adotar. Escrever outros géneros revelou-se muito mais fácil depois desta experiência. Também trabalhei muito a escrita otimizada para motores de busca, mas era algo que, para mim, já vinha fazendo há anos no blog. Foi, aliás, graças ao blog que consegui este contrato. Mostrei vários artigos, expliquei como tinha alguns artigos que rendiam visualizações sem eu ter de fazer nada (um deles ainda hoje rende, sobre o Estoril Open), e mostrei que SEO não era só um módulo no qual tinha tido boa nota na pós-graduação.
Claro que é injusto dizer que foi só ali que trabalhei estas questões da escrita quando, ao mesmo tempo, uma das minhas funções de assistente de marketing incluía escrever artigos sobre livros para o blog das Livrarias Bertrand. No entanto, acho que havia uma liberdade em escrever sobre investimento imobiliário que não havia a escrever sobre livros. Até porque ali fazia outras coisas.
As minhas funções incluíam ser canivete suíço.
Foi ali que comecei a descobrir as minhas competências de canivete suíço. Seis anos depois posso dizer que odeio quando tenho de ser canivete suíço — e acho que ter de ser canivete suíço é o maior inimigo da evolução. Na Bertrand eu escrevia para o blog, fazia a comunicação interna para as livrarias, sentia-me inculta, preparava orçamentos, geria conteúdos do site, tinha vontade de chorar.
Parecia-me necessário ter de saber fazer um pouco de tudo. Afinal, cresci a pensar que tinha de saber um pouco de tudo. Cultura geral é tudo e é, também, um fator fundamental para um jornalista. Primeiro saber um pouco de tudo, depois especializar. Eu achava que era o que estava ali a fazer. Afinal, tinha vindo de uma pós-graduação em marketing digital, onde aprendera um pouco de tudo para depois ir especializar. Para mim, a especialização sempre foi óbvia e tinha duas vertentes: conteúdo e copy. Fosse em copy para redes sociais, para e-mails, para sites ou em conteúdo mais longo, sabia que era ali que estava o meu forte. Demorei a poder ter provas da primeira parte, mas a segunda era inegável.
Saí dali e fui trabalhar outras competências, competências essas que nenhum trabalho até então me tinha dado e que nenhum trabalho depois me deu. Nos onze meses que passei a trabalhar numa clínica veterinária não aprendi nada sobre SEO, sobre redes sociais, sobre Analytics. Ali atendia telefones, marcava consultas, vendia produtos, ajudava em consultas, banhos e tosquias, limpava. O que é que havia ali para aprender sobre marketing e comunicação? Pelos vistos muita coisa. Aprender a falar com públicos variados, a simplificar informação, a vender um produto diretamente ao cliente, a gerir emoções, a lidar com as emoções dos outros e com os egos dos outros. Podemos fingir que o cliente tem sempre razão, mas quando lidamos com eles sabemos que não têm sempre razão. Nós é que temos de fingir que sim.
Não foi um ano fácil e acho que só pareceu mais fácil porque todos os meses punha dinheiro na conta poupança criada com o objetivo de poupar para o mestrado e isso foi motivador. Estava perto do objetivo, estava longe de saber o que estava a ganhar em competências. Sempre as competências, não é?
Fiz o mestrado, voltei a ser assistente de marketing. Ainda era meio canivete suíço, mas não tanto. Agora geria redes sociais, fazia comunicação interna, geria conteúdos no site, aprendi a trabalhar com partes do PHC e a fazer análises de dados. Trabalhar diretamente com redes sociais deixou-me entusiasmada, até muitas publicações não saírem porque ficavam a meio das escadinhas de validação que tinham de passar (olá, micro-managing!). Pensar redes sociais foi das competências mais interessantes que fui ganhando, embora hoje em dia me fruste não as ter a funcionar no seu melhor potencial.
E então fui promovida a canivete suíço sénior
Neste momento tenho todas as funções de um coordenador de departamento (sem o ser oficialmente) com todas as tarefas de um departamento. Não, não me enganei: todas as tarefas de um departamento. Mesmo com alguém a estagiar e um elemento externo como designer freelancer, continuo a ser canivete suíço, mas, desta vez, sou canivete suíço sénior. Tanto posso ter de preparar uma campanha digital, como de escrever para e-mail marketing, preparar briefings, fazer gestão de redes sociais e ser designer gráfica de Canva (embora às vezes tenha de abrir o Affinity Designer), tenho de fazer relatórios e escrever notícias para um site e para uma revista, tenho de pedir orçamentos de coisas e pensar em materiais gráficos impressos, tenho de encaminhar faturas para validação, tenho reuniões. Há sempre uma imagem para fazer (que é sempre super rápida, de acordo com quem me pede), um post para encaixar (é simples, de acordo com quem me pede), um pormenor qualquer a que tenho de ter atenção quando fizer um design qualquer porque na impressão não-sei-quê e como-assim-não-sabes? (que estupidez, então uma pessoa especializada em marketing digital não sabe de cor qual a melhor gramagem para um papel?).
Evoluí muito, eu sei. Mas será mesmo isto a evolução?
Quando penso em evolução profissional não penso propriamente (ou unicamente) em chegar ao mais alto cargo do mundo corporativo. Sim, é ótimo (deve ser, não sei), mas acho que a evolução não se pode só prender.
A evolução tem de se refletir em salários atualizados regularmente e que correspondam às funções e responsabilidades que temos, em condições laborais justas e que permitem bom ambiente de trabalho, em respeito dos pares. Tem de se refletir naquilo que também no resto da nossa vida melhora porque a nossa evolução laboral nos permite ter acesso a coisas como um crédito habitação, um seguro de saúde, uma viagem de vez em quando ou o que quer que consideremos importante para nós.
A evolução também tem de ser podermos ser bons especialistas em algo e isso não é compatível com ser canivete suíço. Se pensares nisso, os especialistas com cargos superiores são especialistas em algo e, nos restantes, delegam porque aquela não é a área de especialidade e compete a outros mostrar o que sabem fazer.
Claro que é importante saber um pouco de tudo na nossa área. Ter uma visão mais holística também nos permite ser melhores profissionais. Mas essa visão holística deve servir para nos ajudar naquilo em que somos bons e queremos ser melhores. Porque um canivete suíço pode ter uma boa lâmina e servir para várias coisas, mas nunca substituirá a qualidade de uma boa faca de cortar pão, que passou a vida a trabalhar para ser a melhor faca de cortar pão. Mas se preferem o tudo-em-um de um canivete suíço só porque sai mais barato… bem, já dizia o ditado que o barato sai caro. E está a custar a evolução.
Esta semana no daylight
Foi uma semana compostinha pelo blog…
Comecei por escrever sobre Vista Chinesa, o livro da Tatiana Salem Levy;
Publiquei também sobre Nem Todas as Árvores Morrem de Pé, a estreia da Luísa Sobral na ficção;
A despedida de abril incluiu, como sempre, as coisas que iluminaram o mês;
E a semana terminou com um livro do Afonso Cruz, Assim, Mas Sem Ser Assim.
A viver nas páginas de…
A Família Caserta, de Aurora Venturini
Novo mês, novo livro de leitura conjunta com a Andreia. Para maio, calhou-nos na sorte a Aurora Venturini, desta vez com A Família Caserta. Depois de uma experiência positiva com As Primas, parto para este livro — o segundo da autora argentina a ser publicado em Portugal — com algumas expectativas. A sinopse de A Família Caserta diz assim:
A história de uma família mergulhada na infâmia, narrada por uma rapariga sobredotada, com problemas emocionais: ingredientes para um romance de alta voltagem.
«De um só golpe, destruí a segunda juventude da minha mãe, talvez a única.» Assim conhecemos María Micaela Stradolini, ou Chela, protagonista inolvidável deste romance, ambientado na alta burguesia argentina dos anos 1920. A irrequieta e antissocial Chela mergulha num baú de papéis e fotografias, tesouros perdidos da sua biografia e da sua família. Ela, que nunca foi nada para ninguém e que é incapaz de se comover, até com a morte do que foi o seu grande amor, vai usar estes objetos para regressar a uma infância de menina rica e talentosa, magra demais e morena demais para o gosto da época. o retrato do que a rodeia é sombrio: a mãe, uma pianista fracassada, adora apenas Lula, a filha do meio; o pai é frio e psicologicamente violento; Lula insulta constantemente a irmã; Juan Sebastián nasce com uma deficiência profunda.
A ânsia maior de Chela é por libertação e liberdade — encontrará ambas nas viagens que faz como adulta, em busca do seu passado e do seu futuro, incluindo uma viagem à Sicília, onde encontrará, por fim, as raízes da sua singularidade.
Aurora Venturini, celebrizada pelo romance As primas, volta a mostrar-se, com um exímio equilíbrio entre sombra e luz, ironia e profundidade, como uma cronista mordaz da natureza humana. a família Caserta é mais uma brilhante exibição da verve narrativa de uma escritora que se adiantou ao seu próprio tempo.
Coisas que iluminaram a semana
Mimos da Lady, sempre, mas este em especial.
Esta foi a minha segunda e última semana de férias e, por isso, aproveitei mais alguns dias em casa da minha mãe antes de voltar para o Porto. Não sei se a Lady tinha consciência de que aquela era a última noite, mas, em vez de dormir com a minha mãe como faz sempre, foi dormir comigo. E, honestamente, são estas coisas. 🫶
P.S.: Numa semana que teve um apagão, acho que tem muita graça ter um segmento que fala de iluminar a semana, não achas? 🤣
Até para a semana,
Tenho andado a pensar nese texto desde que o li há semanas atrás e acho que cheguei finalmente ao que penso.
Acho que ser especializado numa área pode ser o caminho para subir como especialista externo - imagino-me a contratar a melhor pessoa para fazer X.
Mas dentro de uma organização, acho que é um mix entre ser um canivete suíço e pensar na organização num todo, como alguém que está a pensar não só na sua tarefa, mas no impacto total do projeto. Assim dito à liberal, pensar como um gestor e não como um técnico, ou aquela conversa do "managing up".
Percebo muito bem a tua frustração neste post. Acho que, mais do que canivete suíço, frustra imenso isso não ser devidamente recompensado, já que, em Portugal, fazeres bem uma função significa que és recompensada com mais trabalho. Eu que o diga, que estou há seis meses a trabalhar em duas funções (quando é que vem a colega nova? Lol) e só sou aumentada por decreto. É mesmo muito frustrante. Não é que as funções sejam difíceis mas, de repente, és responsável por TUDO no teu local de trabalho, desde os telefonemas ao papel higiénico, e o dinheiro tá no crl como dizia a outra. Tens toda a minha empatia, percebo-te perfeitamente.