149. comercializámos o outono?
sobre a comercialização e idealização do outono e alguns pensamentos sobre esse impacto na saúde mental e ainda a receita do meu crumble de maçã.
Adoro o outono. Eu sei que fica frio (eventualmente), que chove (eventualmente) e que as árvores ficam sem folhas, mas eu adoro. É a estação em que faço anos e é também aquela em que há castanhas assadas e pumpkin spice latte e é uma espécie de interlúdio entre verão e natal, um interlúdio que parece ser o início de um novo ano.
Talvez tenha tido sorte por ter crescido no campo, onde as diferenças das estações se notam rapidamente nas árvores e restantes plantas. Onde outono sempre foi sinónimo de ir apanhar castanhas e comê-las assadas. Onde há sempre alguém que tem abóboras para a sopa. Onde as árvores ganham mesmo tons dourados e as folhas caem e é bonito durante uns dias.
Claro que, enquanto crescia, pumpkin spice lattes e tartes de abóbora não faziam parte dos meus outonos. Eram algo dos filmes e das séries americanas. Na minha vida isso veio depois. Só provei um pumpkin spice latte quando fui para Lisboa e tinha Starbucks onde ir. Em Lisboa, acho que só mesmo esta bebida e os assadores de castanhas na rua denunciavam o outono. As ruas onde vivi não eram assim tão outonais e Lisboa não se encaixa nos ideais de outono que via noutras cidades que apareciam no Pinterest. O Porto, no centro, também não é assim tão outonal. A Maia é mais, ou pelo menos tem mais árvores outonais e dá um certo gosto andar por algumas partes daqui e ter paisagens de outono.
Mas, afinal, que romantização do outono é esta em que imaginamos cidades cobertas de folhas douradas, pumpkin spice lattes, cores quentes na roupa?
A comercialização e comodificação do outono
Vi a menção a este vídeo na newsletter da Marta e, entretanto, ouvi também a Salomé falar sobre ele no Ouro Sobre Azul, quando já eu própria estava a pensar em algumas coisas sobre as quais queria falar relativamente a este tema porque não só fez sentido, mas também me levou a pensar noutra questão que me é querida.
Mas vamos por partes.
Aquilo de que o vídeo fala é de como se criou uma espécie de comodificação do outono, tornando-o uma época apelativa — principalmente para promover o consumo. A verdade é que é uma estação em que parece haver muita coisa para promover. Pensa nisto: setembro é o mês em que começa o outono e é o mês de regresso às aulas, portanto começas logo aí a ter uma série de coisas que precisas de comprar. Logo depois vem o Halloween, que tem sido cada vez mais celebrado em Portugal também. Quando as decorações de Halloween vão chegam logo as de Natal e, antes dele, ainda tens a Black Friday.
Setembro é o mês em que o Starbucks lança o pumpkin spice latte, normalmente disponível apenas até ao fim de outubro. O pumpkin spice latte tem, na verdade, uma história interessante: surgiu em 2008, em plena crise, como algo para dar algum prazer aos consumidores numa altura em que tudo era cinzento e incerto. Embora agora vejas muitos locais ter esta bebida, é certo que durante anos era algo do Starbucks — eu só a conheci por aí.
O vídeo fala ainda de questões como a moda de outono, as fotografias idealizadas com cenários que incluem abóboras e Gilmore Girls como série-chave de outono, mas, acima de tudo, foca-se no consumismo associado à idealização do outono.
A idealização do outono
Se formos por aquilo que vemos nas redes sociais, o outono tem sempre paisagens idílicas, outfits com cores que combinam com essas paisagens. Há uma espécie de idealização daquilo que é o outono e daquilo com que ele se deve parecer. As bebidas, as comidas, as cores… é como se, em todo o lado, o outono se parecesse com algo assim.
Há, claro, interesses económicos por trás. No entanto eu dei por mim a pensar se não poder existir um interesse extra-económico nesta equação. Não encontrei nada que fundamente cientificamente isto, mas como me deu que pensar achei que talvez pudéssemos pensar em conjunto sobre isto. Será que existe um fator de saúde mental associado a esta idealização do outono?
Dei por mim a pensar nisto porque o outono é uma estação propícia à depressão sazonal. Embora não seja exclusiva destes meses, há alguma tendência (essa sim, confirmada cientificamente em alguns estudos) para que os meses frios influenciem a depressão sazonal. Comecemos por falar da depressão sazonal.
O que é a depressão sazonal?
A depressão sazonal, ou transtorno afetivo sazonal, é um tipo de depressão que surge normalmente no início do outono. Apresenta sintomas semelhantes aos de uma depressão normal: ter pouca energia, mudanças de apetite, dificuldade em dormir, afastamento social.
Embora não haja causas específicas, há vários estudos que apontam o facto de os dias solares serem mais curtos como a maior razão para o surgimento da depressão sazonal, além de as características meteorológicas típicas do outono e do inverno serem propícias a ficar em casa.
Em 2020, escrevi mais detalhadamente sobre isto, por isso fica o convite para leres a publicação:
Depressão Sazonal: Preparar a mente para a chegada dos meses frios • daylight
Idealizamos o outono para o enfrentarmos melhor?
Com o vídeo da Tiffany e aquilo que sei sobre depressão sazonal e até alguns gatilhos mentais dei por mim a pensar que talvez exista alguma questão mental associada a esta necessidade de tornar o outono uma estação mais apetecível.
Sim, temos menos luz solar e mais frio e chuva, mas olhem todas estas coisas maravilhosas! É uma espécie de defesa coletiva para o facto de ser uma estação tendencialmente mais sensível. Há tanta coisa aparentemente interessante a acontecer que é impossível sermos engolidos pelo o outono — vamos estar apenas ocupados a beber dezenas de pumpkin spice, a comer tartes, a procurar as abóboras mais bonitas.
Será que aceitámos esta comercialização das estações do ano para nos ser mais fácil lidar com elas? Será esta a nossa forma, coletiva ou individual, de lidar mais facilmente com uma estação que nos obriga a uma quase reclusão quando chegam os dias frios?
Se o fizemos mesmo então acho que conseguimos que as necessidades económicas satisfizessem mais do que isso e acho que é aceitável. Se romantizar o outono o torna mais apelativo e menos temível então acho ótimo.
O outro lado da moeda: a idealização excessiva que leva a frustração
Mas e quando não conseguimos cumprir? E quando vivemos em lugares que não nos dão as paisagens idílicas? Quando não conseguimos ter as decorações ou os outfits ou simplesmente aproveitar a estação como parece que todos aproveitam?
O regresso às aulas é porreiro, mas também é motivo de stress financeiro para muitas pessoas. O Halloween nem sequer tem significado para muitas pessoas. A Black Friday incentiva ao consumo, sim, mas só se tiveres dinheiro para gastar. E o Natal.. entre stress financeiro, stress por estar com família, viagens e até não ter uma família com quem estar…
Será que, apesar de tudo (ou por causa de tudo), estamos também a criar uma versão inalcançável do outono, tão distante que em vez de funcionar a nosso favor cria ainda mais frustração?
Há uma conclusão? Talvez não…
Também tenho culpa nisto. Possivelmente tu também. Quem não adora fotografias de árvores outonais? Vem a época do pumpkin spice e eu sei que hei-de ir pelo menos uma vez ao Starbucks. Chega outubro e eu só penso em castanhas assadas. Eu também gosto mais de pensar num outono com padrões tartan.
O outono vem com imagem idealizada, sim, mas todos temos uma versão idealizada de cada época. Claro que umas são mais promovidas pelo marketing do que outras. Mas também desejamos o verão para certos gelados, para certas bebidas, para certos planos. No fundo não podemos escapar ao poder económico e publicitário de certas indústrias.
Também não tenho uma conclusão a apresentar-te. Mas passei a semana a pensar sobre isto e queria partilhar porque dei por mim a notar que também idealizamos o verão (a praia, as festas, as noites longas, as bebidas, os caracóis, etc.) e que, no entanto, o outono parece ter um perfil estético a cumprir.
Cada vez mais qualquer pretexto serve para tentar vender algo. Há uns anos o Halloween não ocupava grande espaço por cá e hoje vemos um investimento das lojas de decoração para dar opções aos clientes. A Black Friday tem-se imposto. As pessoas usam mais as redes sociais e, por isso, vão também ver essas sessões fotográficas em tons dourados. Inconscientemente, também elas vão começar a associar essas coisas ao outono. Não vão ser só os vendedores de castanhas assadas.
E claro que sabemos que é preciso fazer a economia funcionar, mesmo que nem tudo o que nos é oferecido suprima uma necessidade básica. Não podemos fugir a isto. A questão em relação ao quanto isso nos faz bem ou mal mentalmente já pode ser outra. Ou podem ser outras, porque temos os dois lados. O lado positivo, em que realmente ter um fator aspiracional nos ajuda a lidar melhor com algo, e o lado negativo, em que o facto de não conseguirmos tornar essa idealização real causa frustração e dificulta ainda mais uma época complicada. Talvez não seja algo linear e ambos os lados existam em simultâneo na mesma pessoa.
Se, mesmo consciente, vou deixar de desejar pumpkin spice lattes só porque foi algo que me meteram na cabeça? Não, não vou. O outono é o meu ano novo. Gosto de pensar nele como uma estação de certas coisas e está tudo bem com isso. Se há algo que se aprende a crescer no campo é que cada coisa tem a sua época. Podes ter estufas e outras invenções para poder ter uma coisa fora de época, mas toda a gente sabe que na sua época é que é realmente bom. E é outono. É época de abóboras. De folhas caídas. De começar algum frio que chama pelas malhas. Vamos mesmo tirar-lhe as suas qualidades?
receita do meu crumble de maçã
3 maçãs médias
canela
200 g de farinha
100 g de açúcar
150 g de manteiga
Pré-aquecer o forno a 200 graus.
Partir as maçãs em cubos e misturar com canela a gosto. Eu gosto de fazer as maçãs com casca e colocar bastante canela até todos os bocadinhos estarem bem cobertos.
Colocar num tabuleiro.
Juntar farinha, açúcar e a manteiga partida em bocadinhos (temperatura ambiente). Com as mãos, misturar tudo até que a maior parte da massa esteja a parecer areia. Alguns pedacinhos de manteiga não se vão desfazer tanto, mas também é a graça de ter alguns pedaços maiores.
Colocar esta mistura por cima das maçãs, até cobrir tudo muito bem.
Levar ao forno durante mais ou menos 20 minutos, até estar bem dourado.
Resulta bem com vários tipos de farinha e até com açúcar amarelo.
Podes comer ainda quente, que é uma maravilha.
esta semana no daylight:
Começámos a semana com as coisas que iluminaram setembro;
Escrevi sobre Do Amor e Outros Demónios, o 9.º livro que li do García Márquez;
Este foi o mais popular da semana: mostrei o antes e depois da cozinha da minha mãe e falei sobre todo o processo de remodelação;
O episódio 37 do Crise de Identidade foi sobre o lugar da amizade quanto namoramos e sobre ter identidade para lá das nossas relações;
Por fim, falei sobre o concerto lindinho dos The National no Super Bock Arena.
a viver nas páginas de…
What Are You Going Through, Sigrid Nunez
mais coisas em que pensar
Não é o tipo de vídeo habitual do Jack Edwards, mas foi provavelmente um dos vídeos dele de que mais gostei. Partindo da questão de vários livros de celebridades serem escritos por ghostwriters, o Jack fez uma reflexão sobre o trabalho de um ghostwriter, quem esconde e quem não esconde que usa ghostwriter e ainda o motivo pelo qual é importante para a indústria literária publicar livros de celebridades. Achei o vídeo muito interessante e vale a pena para pensar na parte positiva destes livros.
Coisas que iluminaram a última semana:
The National no Super Bock Arena
Sinto que The National existe na minha vida desde sempre, não tivesse eu crescido rodeada de bandas rock e de revistas Blitz, no entanto acho que só com o Sleep Well Beast comecei a ouvi-los realmente. Depois de muitas visitas a Portugal, fui finalmente a um concerto deles, no Super Bock Arena. Com bilhete comprado desde janeiro, houve dois álbuns novos entretanto e estava muito curiosa com a forma como iriam equilibrar os temas antigos e os novos. O resultado foi um concerto memorável, com um final sempre arrepiante.
Boa semana,